Ele é muito orgulhoso para que pudéssemos ser inocentes: A criminalização do desacato em face da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos
– Marco Antônio Vieira e Sá[1]
“Teria sido este o mais comum pensamento oculto dos cristãos do primeiro século: ‘É melhor convencer-se da própria culpa do que da própria inocência, pois não se sabe exatamente qual a inclinação de um juiz tão poderoso- mas deve-se temer que ele só espere encontrar pessoas conscientes da culpa! Com seu grande poder, será mais fácil perdoar um culpado do que admitir que alguém tem razão na sua presença’. É o que sentia a pobre gente da província diante do pretor romano: ‘Ele é muito orgulhoso para que pudéssemos ser inocentes’- como não reapareceria este sentimento na representação cristã do juiz supremo.”- Friedrich Nietzsche
A superação de regimes autoritários por sociedades que se pretendem democráticas é um processo permanente, que não se pode encerrar em um único ato, mas deve embasar todas as decisões políticas, a incluir a política criminal. Trata-se de desafio premente para as sociedades latinoamericanas neste momento histórico em que, enquanto nos afastamos no tempo dos regimes autoritários que tomaram a região na segunda metade do século passado, suas permanências são sensíveis no atuar cotidiano dos órgãos executivos do sistema penal.
Nesse sentido, consolidou-se o conceito de justiça transicional como conjunto de mecanismos, estratégias e abordagens que pretendem enfrentar o legado autoritário de violência e repressão deixado por esses regimes. A justiça transicional passaria por quatro perspectivas fundamentais: i- A busca pela verdade (direito à memória e à verdade); ii- a investigação e responsabilização pelas violações (direito à justiça); iii- a reparação às vítimas pelos danos sofridos (direito à reparação); e iv- o dever de reforma das instituições.[2]
Interessa-nos aqui o dever de reforma das instituições, que deve ir além do afastamento dos agentes responsáveis por violações de instituições governamentais. Esta reforma consiste na reestruturação das instituições à luz do princípio democrático, com a superação de permanências autoritárias, de modo a descaracterizar o paradigma repressivo e restabelecer a confiança da sociedade nessas instituições.[3]
Assim, toda a legislação penal e processual herdada pelas democracias deve ser repensada à luz da Constituição e dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. A permanência de institutos como os autos de resistência, o julgamento de civis por tribunais militares e a criminalização do desacato e da apologia acabam por reforçar o caráter autoritário dos sistemas penais latinoamericanos, em violação à nova ordem constitucional e aos tratados de direitos humanos.
Especificamente quanto ao crime de desacato, trata-se de tipo penal inibidor do controle dos órgãos e agentes públicos pela população, uma vez que importa em constante ameaça de responsabilização criminal aos indivíduos que manifestam opiniões sobre a conduta de agentes públicos, a violar os princípios constitucionais da legalidade, da isonomia e da liberdade de expressão, também garantidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, introduzida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto Presidencial 678/1992.
De início, é patente que o artigo 331 do Código Penal, ao definir desacato como a conduta de “[d]esacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, deixa de observar a garantia constitucional da legalidade, prevista pelo artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição, já que não descreve de forma certa a conduta criminalizada. Não esclarece o dispositivo legal a conduta que é considerada desacato, utilizando-se de verbo cujo sentido é amplo. Literalmente, desacatar significa deixar de acatar, desrespeitar. Deixa-se ao arbítrio da autoridade a definição sobre quando estaria caracterizada a falta de respeito que justifica a incidência do tipo penal.
De outro lado, a criminalização do desacato viola o princípio da isonomia, na medida em que proporciona uma maior proteção aos funcionários públicos do que aos particulares, quando os princípios republicano e democrático impõem, ao contrário, a sujeição da administração pública ao controle popular, com o objetivo de impedir e fiscalizar o abuso de autoridade.
É desta perspectiva que a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabelece, em seu item 11, que: “Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”[4]
Merece especial destaque essa conclusão no sentido de que a criminalização do desacato atenta contra a liberdade de expressão. Na medida em que constitui ameaça ao indivíduo que pretende expressar sua opinião sobre os métodos da administração ou de agentes públicos, o crime de desacato inibe o controle que os indivíduos devem poder exercer sobre a administração pública e a manifestação de críticas e sugestões.
Desse modo, a criminalização do desacato inibe a liberdade de expressão em momento que ela assume importância peculiar: a desigual relação entre administrado e administração pública. A Relatoria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a Liberdade de Expressão, em seu Informe sobre Leis de Desacato e Difamação Criminal, concluiu que:
“tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas. (…) [A]s leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias. (…) Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o governo pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria.”[5]
Alerta o Informe para uma questão fundamental: mais importante que a função declarada do crime de desacato (a tutela da honra do servidor público) são as funções latentes que acaba por exercer.[6] Trata-se de instrumento colocado à disposição do arbítrio de agentes públicos, especialmente daqueles que lidam com situações extremas, no contato direto com a população. Com efeito, não é pouco comum a utilização do crime de desacato para se acobertar o abuso de poder, deixando o particular em posição de extrema vulnerabilidade, de modo a que deixe de denunciar o abuso. Trata-se, ainda, de tipo penal subsidiário, utilizado após discussões entre agentes públicos e camelôs, artistas de rua, e outros grupos, quando não se consegue imputar crime mais grave. Ao lado da apologia ao crime, é delito dos mais utilizados pelas agências penais quando pretendem retomar a prática de se interromper apresentações musicais e deter artistas, típica do governo ditatorial.
Numa perspectiva do Direito Penal como poder disciplinar, a criminalização do desacato impõe a passividade diante do arbítrio estatal como conduta prudente.
Não foi por outro motivo que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, diante de recorrentes detenções de manifestantes, cinegrafistas e advogados pelo crime de desacato durante as manifestações populares que ocorreram em 2013, esgotadas as instâncias internas, levou a questão à análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
No mesmo sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem dois precedentes que apontam o dever de os Estados adequarem sua legislação, descriminalizando o descato: o caso Tristán Donoso Vs. Panamá e o caso Caso Palamara Iribarne Vs. Chile.[7]
Fundamentais, neste contexto, determinadas iniciativas políticas e administrativas. O Projeto de Lei 602/2015, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys, altera a Lei de Improbidade Administrativa para prever expressamente o abuso de autoridade como ato que atenta contra os princípios da administração pública e revoga o artigo 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato. Em sua justificativa, o projeto aponta para os precedentes da Comissão e da Corte Interamericanas de Direitos Humanos e para a possibilidade de o Brasil se ver condenado, diante da iniciativa da Defensoria Pública de São Paulo.[8]
Outra iniciativa partiu da Defensoria Pública de São Paulo, cuja Corregedoria-Geral expediu a Recomendação 03, em que orienta os responsáveis pelos órgãos da instituição “que não instalem placas, cartazes ou avisos que fazem referencia ao artigo 331 do Código Penal (crime de desacato), ou que retirem as porventura hoje existentes, considerando que tal conduta é constrangedora ao usuário e pode inibi-lo de formular eventuais críticas e sugestões para a melhoria dos serviços.”
De todo modo, é importante destacar que a descriminalização do desacato independe de expressa previsão legal, uma vez que qualquer condenação por este tipo penal deve ser tida por inconstitucional e anticonvencional. Em que pese a controvérsia sobre a natureza dos tratados internacionais de direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal reconheceu no Habeas Corpus 95967/MS que a legislação infraconstitucional deve respeitar a Convenção Americana de Direitos Humanos, diploma legal que, segundo a Comissão e a Convenção Interamericanas de Direitos Humanos, impede a criminalização do desacato. Cabe, portanto, ao Poder Judiciário negar aplicação ao artigo 331 do Código Penal, seja em razão de sua não recepção pela Constituição, seja em razão da anticonvencionalidade.
Referências Bibliográficas:
BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
MENDEZ, E. Juan. Responsabilização por Abusos do passado. In: REÁTEGUI, Feliz (Org.). Justiça de Transição: Manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça.
REMÍGIO, Rodrigo Ferraz de Castro. Democracia e Anistia Política: rompendo com a cultura do silêncio, possibilitando uma Justiça de Transição. Revista de Anistia Política e Justiça de Transição – nº 1 (janeiro/junho 2009). Brasília: Ministério da Justiça.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Técnico Superior Jurídico na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
[2] MENDEZ, E. Juan. Responsabilização por Abusos do passado. In: REÁTEGUI, Feliz (Org.). Justiça de Transição: Manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça.
[3] REMÍGIO, Rodrigo Ferraz de Castro. Democracia e Anistia Política: rompendo com a cultura do silêncio, possibilitando uma Justiça de Transição. Revista de Anistia Política e Justiça de Transição – nº 1 (janeiro/junho 2009). Brasília: Ministério da Justiça.
[4] Disponível em http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm. Consulta em 02/10/2015.
[5] Disponível em https://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/vol.3i.htm. Consulta em 02/10/2015.
[6] BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, páginas 87 a 90.
[7] Sentenças disponíveis em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_135_esp.pdf e http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf Consulta em 02/10/2015.
[8]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5162F164C76654D21622AE3C48CF8D65.proposicoesWeb2?codteor=1306621&filename=PL+602/2015